segunda-feira, 9 de março de 2015

Se o aborto for legalizado, como ficam os homens?



Existe um lado meio esquecido na discussão sobre aborto: o do homem, que contribuiu com 50% do material genético do feto. Se a mulher tiver direito de abortar, independentemente da vontade do parceiro (como eu e quase todas as feministas defendem), é justo que todo pai também possa, no mesmo prazo permitido para o aborto, renunciar a todos os direitos e deveres sobre a criança. Ou seja, se o homem não pode forçar ou proibir a mulher de fazer aborto, a mulher também não deveria poder forçar o homem a assumir o filho, nem a pagar pensão depois.

Veja bem, não estou defendendo homens que abandonam mulheres grávidas! Também não defendo automaticamente mulheres que decidem pelo aborto. Acontece que, assim como existem circunstâncias em que a decisão de abortar parece adequada, existem circunstâncias em que um homem perfeitamente decente pode querer recusar a responsabilidade sobre um filho não nascido.

Nossa legislação atual sobre responsabilidade dos pais só parece adequada partindo da ficção de que não existe aborto, ou seja, de que uma gravidez é uma sentença definitiva para as mulheres; já que a mulher, teoricamente, é obrigada a levar a gravidez adiante, faz sentido que o pai arque com responsabilidades semelhantes no sustento do filho, mesmo contra sua vontade. Mas, se o aborto for legalizado no Brasil (tudo indica que é só questão de tempo), a balança da justiça inevitavelmente penderá para o lado das mulheres, a menos que outras leis também sejam atualizadas.

Não há nada de misterioso ou absurdo no que estou dizendo. Se a mulher pode mudar de ideia, perceber que não está pronta para ter um filho, etc, por que o homem não poderia? Se legalizarmos de vez o aborto, mas não alterarmos a legislação sobre os direitos e deveres paternos, estaremos legalizando e facilitando injustiças, como o velho “golpe da barriga” (mulheres que engravidam sem o consentimento do parceiro, geralmente para tentar "segurar" o relacionamento ou para garantir uma fonte de renda via pensão alimentícia).

Não custa lembrar alguns fatos óbvios: o homem não tem como saber se a mulher está tomando pílula anticoncepcional, ela pode facilmente enganá-lo (e alegar que o medicamento falhou; como existe mesmo chance de falha, é impossível detectar a mentira) e, embora a mulher não possa obrigá-lo a ficar no relacionamento, pode obrigá-lo judicialmente a pagar pensão para a criança. Além disso, o homem nem tem como saber se a mulher está grávida, ela pode muito bem abortar antes de contar, sem consultar o companheiro. Ou seja, a escolha efetiva sobre a reprodução, independentemente do aparato legal, é quase 100% feminina. Atualmente, a mulher pode impor um filho ao homem (que muitas vezes só queria sexo), mas o homem não pode impor um filho à mulher; mesmo que estupre ou sabote a camisinha, existe pílula do dia seguinte e aborto.

É até justo, num sentido cosmológico, que a escolha efetiva seja da mulher, afinal é ela que arca com o maior investimento quando o casal gera um filho: nove meses de gestação, risco para a própria vida, amamentação, maior parcela dos cuidados com a criança, etc. A lei não tem como mudar esses fatos, derivados da biologia. O que não podemos aceitar é que a lei crie novas injustiças, com a desculpa de compensar fatos naturais que nos parecem injustos.

domingo, 8 de março de 2015

Feminismo e aborto, um divórcio necessário



Na cabeça de muita gente, feminismo e aborto andam juntos. Algumas feministas acham até absurda a ideia de um feminismo “pró-vida”. Mas essa ligação entre feminismo e aborto, que hoje nos parece tão natural, só começou na década de 1960, com a chamada “segunda onda” feminista; as primeiras ativistas dos direitos das mulheres, ainda no século XIX, eram predominantemente contra o aborto. E, pensando bem, não existe mesmo nenhuma contradição entre defender os direitos das mulheres e negar um suposto “direito ao aborto”.

É claro que qualquer feminismo digno desse nome deveria lutar por mais liberdade para as mulheres. Acontece que, por razões religiosas (ou qualquer outro motivo), muitas pessoas simplesmente não enxergam o aborto como uma simples questão de liberdade da mulher (como fazer uma tatuagem ou escolher uma profissão). Isso não é machismo, não é pensamento atrasado, é simplesmente reflexo de padrões morais diferentes. Algumas pessoas consideram um feto de qualquer tamanho como uma pessoa plena, merecedora do direito à vida, enquanto outras consideram o feto um conjunto de células, sem consciência ou personalidade, e portanto não equiparável a uma pessoa “de verdade”. Não existe uma resposta certa ou “científica” para essa questão! Se não existe resposta certa, não deveríamos enfatizar o “direito ao aborto” como uma bandeira de luta de TODO o movimento feminista. Afinal, existem inúmeras outras causas feministas mais gerais, que podem perfeitamente ser defendidas até pelos religiosos mais fervorosos. Ao ligar o feminismo a uma posição definida na controvérsia sobre aborto, o feminismo só perde força, vira um movimento dogmático e burro, que afasta milhões de pessoas que poderiam contribuir muito com sua luta.

Dito isso, minha posição pessoal sobre a questão é a seguinte: o aborto deveria ser permitido em qualquer caso, de acordo com a vontade exclusiva da mãe, até uma idade gestacional limite. O ponto mais lógico para um limite absoluto me parece aquele em que um feto saudável já poderia sobreviver fora do útero (com os cuidados de um bom hospital). Claro que isso já seria uma gravidez bastante avançada, e os abortos costumam ser feitos muito antes, então a lei poderia prever um prazo mais curto.

É importante perceber que legalizar o aborto é muito diferente de banalizá-lo como mais um método anticoncepcional; aliás, acho que ninguém defende isso. Mesmo legalizado, o aborto ainda seria caro e potencialmente traumático. Os países que legalizaram o aborto geralmente têm todo um protocolo de atendimento para garantir que a mãe sabe o que está fazendo e que conhece as alternativas (como adoção). E é sempre bom lembrar que uma pessoa pode ser a favor da legalização do aborto sem ser a favor do aborto em si, da mesma forma como eu não gosto de drogas mas sou a favor da liberação de todas elas.

Por mais que consideremos o aborto como moralmente errado, a maioria das pessoas consegue entender que nem toda conduta imoral deveria ser criminalizada (ex: adultério). Sim, após a legalização o número de abortos tenderia a crescer, mas pelo menos seriam feitos com maior segurança e o risco para as mães seria menor. Isso sem falar nos benefícios indiretos da menor quantidade de filhos indesejados, como queda na criminalidade nas décadas seguintes (vide o excelente livro Freakonomics).

Mas mesmo que, do ponto de vista utilitarista, legalizar o aborto seja melhor do que criminalizá-lo, não podemos simplesmente descartar as objeções morais e religiosas de grande parte da sociedade. Não porque as religiões “merecem respeito” automaticamente (não merecem), mas porque as objeções ao aborto também fazem sentido. No mínimo, deveríamos ser sensíveis ao argumento de que um cidadão não deveria ser obrigado a financiar, com seus impostos, um prática que ele considera abominável.

Volto a insistir: certas controvérsias éticas não tem solução “certa”; como vivemos numa democracia, a melhor solução é apenas aquela defendida pela maior parte da sociedade. Outro exemplo, frequentemente levantado por feministas para mostrar a "incoerência dos conservadores", é questão da pena de morte (conservadores tendem a ser contra o aborto e a favor da pena de morte). Será que essa questão também pode ser resolvida "racionalmente"? Eu acho que não. Se ficasse provado estatisticamente que a pena de morte tem o efeito de reduzir crimes violentos, isso tornaria “certos” todos os que defendem tal pena e “errados” os que são contra? Não, e até uma pessoa nada religiosa poderia ser contra a pena de morte, simplesmente por achar que o risco de cometer injustiças irreparáveis é muito grande.

Resumindo: você pode ser feminista e ser contra a legalização do aborto. Não estou dizendo que o feminismo pró-escolha (ou pró-aborto) esteja errado; o que está errado é o feminismo pró-estupidez que diz que só pode ser feminista quem defende o aborto. Lembre-se, suas ideias não precisam vir num pacote, use o seu cérebro para decidir caso a caso!