domingo, 8 de março de 2015

Feminismo e aborto, um divórcio necessário



Na cabeça de muita gente, feminismo e aborto andam juntos. Algumas feministas acham até absurda a ideia de um feminismo “pró-vida”. Mas essa ligação entre feminismo e aborto, que hoje nos parece tão natural, só começou na década de 1960, com a chamada “segunda onda” feminista; as primeiras ativistas dos direitos das mulheres, ainda no século XIX, eram predominantemente contra o aborto. E, pensando bem, não existe mesmo nenhuma contradição entre defender os direitos das mulheres e negar um suposto “direito ao aborto”.

É claro que qualquer feminismo digno desse nome deveria lutar por mais liberdade para as mulheres. Acontece que, por razões religiosas (ou qualquer outro motivo), muitas pessoas simplesmente não enxergam o aborto como uma simples questão de liberdade da mulher (como fazer uma tatuagem ou escolher uma profissão). Isso não é machismo, não é pensamento atrasado, é simplesmente reflexo de padrões morais diferentes. Algumas pessoas consideram um feto de qualquer tamanho como uma pessoa plena, merecedora do direito à vida, enquanto outras consideram o feto um conjunto de células, sem consciência ou personalidade, e portanto não equiparável a uma pessoa “de verdade”. Não existe uma resposta certa ou “científica” para essa questão! Se não existe resposta certa, não deveríamos enfatizar o “direito ao aborto” como uma bandeira de luta de TODO o movimento feminista. Afinal, existem inúmeras outras causas feministas mais gerais, que podem perfeitamente ser defendidas até pelos religiosos mais fervorosos. Ao ligar o feminismo a uma posição definida na controvérsia sobre aborto, o feminismo só perde força, vira um movimento dogmático e burro, que afasta milhões de pessoas que poderiam contribuir muito com sua luta.

Dito isso, minha posição pessoal sobre a questão é a seguinte: o aborto deveria ser permitido em qualquer caso, de acordo com a vontade exclusiva da mãe, até uma idade gestacional limite. O ponto mais lógico para um limite absoluto me parece aquele em que um feto saudável já poderia sobreviver fora do útero (com os cuidados de um bom hospital). Claro que isso já seria uma gravidez bastante avançada, e os abortos costumam ser feitos muito antes, então a lei poderia prever um prazo mais curto.

É importante perceber que legalizar o aborto é muito diferente de banalizá-lo como mais um método anticoncepcional; aliás, acho que ninguém defende isso. Mesmo legalizado, o aborto ainda seria caro e potencialmente traumático. Os países que legalizaram o aborto geralmente têm todo um protocolo de atendimento para garantir que a mãe sabe o que está fazendo e que conhece as alternativas (como adoção). E é sempre bom lembrar que uma pessoa pode ser a favor da legalização do aborto sem ser a favor do aborto em si, da mesma forma como eu não gosto de drogas mas sou a favor da liberação de todas elas.

Por mais que consideremos o aborto como moralmente errado, a maioria das pessoas consegue entender que nem toda conduta imoral deveria ser criminalizada (ex: adultério). Sim, após a legalização o número de abortos tenderia a crescer, mas pelo menos seriam feitos com maior segurança e o risco para as mães seria menor. Isso sem falar nos benefícios indiretos da menor quantidade de filhos indesejados, como queda na criminalidade nas décadas seguintes (vide o excelente livro Freakonomics).

Mas mesmo que, do ponto de vista utilitarista, legalizar o aborto seja melhor do que criminalizá-lo, não podemos simplesmente descartar as objeções morais e religiosas de grande parte da sociedade. Não porque as religiões “merecem respeito” automaticamente (não merecem), mas porque as objeções ao aborto também fazem sentido. No mínimo, deveríamos ser sensíveis ao argumento de que um cidadão não deveria ser obrigado a financiar, com seus impostos, um prática que ele considera abominável.

Volto a insistir: certas controvérsias éticas não tem solução “certa”; como vivemos numa democracia, a melhor solução é apenas aquela defendida pela maior parte da sociedade. Outro exemplo, frequentemente levantado por feministas para mostrar a "incoerência dos conservadores", é questão da pena de morte (conservadores tendem a ser contra o aborto e a favor da pena de morte). Será que essa questão também pode ser resolvida "racionalmente"? Eu acho que não. Se ficasse provado estatisticamente que a pena de morte tem o efeito de reduzir crimes violentos, isso tornaria “certos” todos os que defendem tal pena e “errados” os que são contra? Não, e até uma pessoa nada religiosa poderia ser contra a pena de morte, simplesmente por achar que o risco de cometer injustiças irreparáveis é muito grande.

Resumindo: você pode ser feminista e ser contra a legalização do aborto. Não estou dizendo que o feminismo pró-escolha (ou pró-aborto) esteja errado; o que está errado é o feminismo pró-estupidez que diz que só pode ser feminista quem defende o aborto. Lembre-se, suas ideias não precisam vir num pacote, use o seu cérebro para decidir caso a caso!

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