domingo, 11 de janeiro de 2015

Como pesquisas mal feitas prejudicam a causa feminista


Em dezembro de 2014, foi divulgada a pesquisa “Violência Doméstica: o jovem está ligado?”, encomendada pelo Instituto Avon e realizada pelo Data Popular. Essa pesquisa, bem como sua repercussão em inúmeros sites de notícias, exemplifica muito bem a razão de ser do nosso Feminismo Racional. Ela traz alguns dados muito interessantes e preocupantes, mas também outros que não servem para tirar qualquer conclusão útil. Juntar dados bons com dados (ou conclusões) ruins acaba comprometendo a credibilidade da pesquisa como um todo, e matérias alarmistas sobre ela só pioram a situação.

A pesquisa foi bastante ampla, entrevistou grande número de homens e mulheres de 16 a 24 anos, de todas as regiões brasileiras. Ou seja, a amostra (pelo menos numa análise rápida) parece ser bastante representativa dos jovens  brasileiros, então os dados são confiáveis no sentido estatístico. Vejamos como o Estadão apresentou os resultados (alterei a figura com traços em vermelho para antecipar os problemas que serão discutidos adiante).


Os problemas começam com o conceito de “violência”. A pesquisa afirma que 66% dos homens admitem que praticaram “violência” contra a parceira, um número bastante alto. Porém, isso é um dado agregado; as perguntas originais foram sobre condutas específicas, e aí a situação já parece um pouco diferente. Na verdade, a maioria das supostas agressões foram condutas não necessariamente agressivas ou violentas: procurar mensagens e ligações no celular da parceira, xingá-la ou impedi-la de usar determinada roupa. As agressões “pesadas”, aquelas que todo mundo entende como violência, foram bem mais raras. Tenho plena consciência de que esses dados provavelmente estão subestimando o número de agressões, já que alguns homens simplesmente mentiriam na resposta (mesmo a pesquisa sendo anônima pela internet). Também sei que é importante conscientizar quanto a todo tipo de violência e desrespeito, não apenas a agressão física. Mas isso não é motivo para esticar tanto os conceitos de violência e agressão, a ponto de incluir bisbilhotar o celular da namorada... para mim, soa simplesmente exagerado. E eu acho que o tiro sai pela culatra: as pesquisas são feitas para conscientizar a população, mas o exagero acaba ficando evidente e isso dá munição para todo tipo de crítica ao movimento feminista.

Outro problema muito frequente nas estatísticas sobre questões feministas é a falta de parâmetros de comparação, e isso fica bem evidente na pesquisa do Data Popular. OK, agora sabemos quantos homens admitem ter agredido a parceira. Mas e quanto às mulheres que agrediram seus parceiros? A pesquisa nem perguntou! Está implícito que os pesquisadores acham que os homens xingam e agridem muito mais as parceiras do que são xingados e agredidos por elas. Será? (Pessoalmente, acredito que, no quesito agressão física, os homens agridem mais. Mas será que até nos xingamentos existe muita diferença?) Será que estamos diante de um quadro escandaloso de machismo ou simplesmente de agressividade e baixaria mútua nas relações amorosas entre jovens?

E agora, o trecho mais problemático da reportagem: “a maioria aprova valores machistas”. De onde eles tiraram isso? Ora, o machismo só poderia ser detectado pela diferença de tratamento entre os gêneros. A informação de que 53% dos homens e 49% das mulheres acham que “a mulher deve ter a primeira relação sexual com um namorado sério” só seria machista se tivéssemos uma porcentagem muito mais baixa (digamos 20%) que achasse que a primeira relação sexual do homem deve ser com uma namorada séria. Mas a pesquisa nem se interessou em perguntar isso! Ficou um dado solto e irrelevante, que não demonstra absolutamente nada sobre machismo. O mesmo vale para os 43% de homens e 34% de mulheres que concordaram que “mulher que tem relações sexuais com muitos homens não é para namorar”. Ora, será que isso é sinal de machismo ou mostra simplesmente um moralismo mais geral, talvez de base religiosa, quanto ao comportamento sexual? Será que os homens que “têm relações sexuais com muitas mulheres” são “para namorar”? A pesquisa do Data Popular perdeu uma ótima oportunidade de descobrir isso.

Quero deixar claro que não adianta nada tentar defender a pesquisa dizendo que ela era apenas sobre machismo e violência contra a mulher, e não sobre “femismo” ou violência nos relacionamentos. Os pesquisadores têm todo o direito de querer provar uma tese (por exemplo, de que existe um machismo galopante na sociedade), mas eles nunca conseguirão provar essa tese fazendo as perguntas erradas, ou deixando de fazer perguntas simples que forneceriam uma base adequada de comparação. Fico me perguntando se a omissão dessas perguntas foi apenas um amadorismo metodológico ou se foi proposital - é até possível que as perguntas tenham sido feitas, mas que os resultados foram omitidos por não apoiarem as conclusões desejadas por quem encomendou o estudo.

Por fim, vamos analisar a manchete em si: “3 em cada 4 jovens já foram assediadas ou agredidas por parceiro”. Primeiro, de onde saiu esse “por parceiro”? Se o jornal se refere aos 75% de mulheres que foram assediadas ou violentadas, como aparece na figura, não fica claro por quem elas foram agredidas, mas tenho quase certeza que não foi só pelo parceiro (seria estranho perguntar “você já foi assediada fisicamente em transporte público.. pelo seu parceiro?”). Infelizmente, os dados originais dessa pesquisa não foram disponibilizados em lugar nenhum até agora, então fica difícil saber o que foi falha da pesquisa em si e o que foi má interpretação do jornal. Continuando: leia novamente a manchete, tendo em mente que, nessa era de compartilhamento impulsivo de notícias, isso é tudo o que muitas pessoas lerão da reportagem. Ora, “assédio” é uma palavra muito subjetiva (dar em cima de alguém na balada é assédio?), e certamente menos grave que "agressão". Se você junta os dois numa só frase com esse fatídico "ou", muita gente vai pensar que quase todas essas jovens foram “apenas assediadas” e não agredidas, e achará que está tudo bem. Não seria melhor destacar na manchete um dado que não pudesse ser tão mal interpretado, por exemplo, a porcentagem de mulheres que já foram fisicamente agredidas por seus parceiros?

A pesquisa Avon/Data Popular está longe de ser um caso isolado. Muitas pesquisas com esses mesmos problemas têm sido usadas por feministas no mundo todo para apoiar suas teses. É crucial saber separar o joio do trigo. Mesmo as pesquisas ruins não são de todo ruins e costumam trazer dados úteis. Às vezes os dados são bons, mas a interpretação deles é ruim, até na pesquisa original, e piora quando essa interpretação é distorcida sucessivamente por feministas sem familiaridade com o método científico. Só com boas informações e análises poderemos saber onde estão os problemas reais das mulheres e o que fazer para resolvê-los, além de podermos informar melhor o público em geral. 

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